CartaAoCommonsLegal

Caros moradores do commons "legal",

Saudações! Essa missiva chega na soleira da sua porta vinda da notória rua asiática, localizada na sombra de um bazar improvisado, onde todos os tipos de piratas orientais e outras figuras ladinas se encontram para trocar o que vocês consideram bens roubados. Nós os chamamos bens "emprestados". A diferença na linguagem com a qual se fala sobre as coisas ("roubadas" versus "emprestadas") é também uma medida da distância entre dois mundos diferentes.

Para começar, pode-se apenas roubar algo, se ele é possuído por alguém. Se as coisas não são "possuídas", mas apenas mantidas sob a guarda, então só podem ser "emprestadas" e não roubadas. Assim, o que vocês chamam de DVD "pirateado" é o que nós chamaríamos um DVD "emprestado" das ruas e o preço que pagamos por ele é equivalente ou pelo menos análogo a uma contribuição crescente à grande biblioteca circulante pública da rua asiática.

Nós dirigimos essa carta, escrita nos precintos daquela biblioteca, para todos vocês que desfrutam do saudável conforto do commons legal, em particular daquele que se chama de "criativo" [Creative Commons]. Nós as vezes pisamos nos seus cercamentos e temos ternas memórias da nossa pilhagem. No entanto, nossa curta estada em seu mundo teve necessariamente que ser breve. Logo fomos inquiridos sobre nossa procedência, nossas intenções, nossos documentos. Quase não havia papel suficiente para provarmos a vocês que tínhamos direito de passagem.

Nós apreciamos e admiramos a determinação com que vocês cultivam o seu jardim de licenças. A proliferação e a variedade com que florescem contratos e cláusulas em suas estufas é maravilhosa. Mas nos encontramos no paradoxo de um espaço que é chamado commons e ainda assim é tão cercado e de tantas maneiras, que é intrigante. O número de vezes que tivemos que pedir permissão e o número de postos de segurança com os quais tivemos que negociar para entrar num pedaço do seu commons é impressionante. E cada vez que estávamos de saída, tivemos que ser revistados, apenas para garantir que não tínhamos surrupiado alguma coisa ou deixado algum traço de uma semente nociva por engano no seu frágil ecossistema. Às vezes, achamos que quando as pessoas falam em "propriedade comum" é difícil saber onde termina o comum e onde começa a propriedade.

Principalmente, nos surpreende a ingenuidade (e diligência) que vocês demonstram em sustentar a norma que diz que a não ser que algo tenha sido explicitamente colocado como parte do "commons" pelo seu proprietário de direito, ele estará fora das fronteiras para todos os outros. Até agora, nosso entendimento da palavra que vocês usam, o "commons", tinha nos sugerido tratar-se de um espaço no qual as pessoas poderiam tirar de acordo com seus desejos e contribuir de acordo com as suas capacidades. Isso implicava uma relação essencialmente entre pessoas, fundada numa ética de reciprocidade dada como certa, no sentido de quem dá, recebe. Entretanto, no espaço que vocês chamam de "commons" descobrimos que a regra é - tire de acordo com o rótulo que está naquilo que você encontra e dê na medida da licença que você quiser.

Isso indicava que uma relação entre pessoas, era, de alguma maneira, substituída por uma relação entre pessoas e as coisas que essas pessoas possuíam, herdaram ou criaram. Significava que poderíamos acessar alguma coisa apenas se o dono dissesse que poderíamos. Isso queria dizer que uma música ou uma estória ou uma idéia que não tivesse rótulo nela não estava disponível para ser retirada. Temos que admitir que parece um pouco sufocante, pois era um pouco como racionar o ar que respiramos, de acordo com o direto que se tem ou não de respirar livremente.

Estranhamente, a capacidade de nomear algo como "meu", mesmo se para "compartilhá-lo" requer um grau de obtenção que não é igualmente distribuído. Nem todo mundo vem ao mundo com a confiança de que algo é "seu" para compartilhar. Isso significa que o "commons", na sua terminologia, consiste de um arranjo no qual apenas aqueles que estão no círculo mágico dos proprietários confiantes têm uma parte daquilo que é essencialmente uma configuração de diferentes pedaços de propriedade cercada. O que eles fazem é basicamente uma série de trocas baseadas num entendimento mútuo de seus direitos de propriedade exclusivos. Eu dou então algo que tenho e em troca recebo algo que você possui. O bem ou item em questão nunca sai do circuito da propriedade, mesmo quando, paradoxalmente, é compartilhado. Bens que não são possuídos ou aqueles que foram retirados do circuito da propriedade não podem efetivamente ser compartilhados ou mesmo se os pode fazer circular.

Onde ficam aqueles que não têm propriedade para começar? Talvez com ainda menos do que podem ter num cenário no qual havia consolo em ser capaz de fazer com partes e pedaços quebrados, copiados e montados e então postos para circular essencialmente pelas pessoas que não alegavam qualquer propriedade ou patrimônio cultural anterior. Vejam, nós tivemos nossa educação na biblioteca pública da rua, nos arquivos das calçadas. Aqui, nossa cultura veio a nós na forma de cópias apagadas e desgastadas e não embaladas para presente e com laços de licenças. Nós pegamos o que podíamos, quando podíamos, onde podíamos. Se tivéssemos esperado para pegar o que nos fosse permitido "compartilhar", não teríamos ido muito longe, pois ninguém nos teria reconhecido como "acionistas" legítimos. Nossas conquistas foram baseadas na confiança que vem de saber que se tem um direito de ter o que se sabe e um dever de saber o que se tem.

Seu "commons" não é um lugar onde se pode compartilhar facilmente. Pois, freqüentemente, quando nos foi perguntado o que nós "temos", tivemos que fugir do seu olhar inquiridor. Nós temos muito pouco e o pouco que temos está muitas vezes sob disputa, porque ninguém havia se preocupado de manter um registro detalhado das origens. Nestas circunstâncias, se tivéssemos escutado sua estipulação de apenas compartilhar o que temos, quase nada teria sido passado adiante. E para a vida continuar, as coisas tem que ser passadas. Assim, compartilhamos um monte de coisas que nunca possuímos. Elas foram "emprestadas".

Você chama isso de pirataria. Talvez seja pirataria. Mas temos que pensar nas consequências. As consequências da ausência de infraestrutura que faz a cultura do compartilhamento que é também uma cultura de legalidade possível. Na ausência dessa infraestrutura, temos que confiar em outros mecanismos. Quando você não tem uma biblioteca pública, tem que inventar uma na rua, com todos os livros que conseguir reunir, com tudo o que puder mendigar, ou emprestar. Ou roubar.

Tudo que pedimos, caros habitantes do commons "legal" é que vocês nos deixem ser. Sejam um pouco mais cautelosos antes de nos condenar. Um mundo sem nossas bibliotecas públicas secretas seria um mundo mais pobre. Seria um mundo no qual muito poucas pessoas lêem muito poucos livros e apenas aqueles que podem ter coisas são os que podem compartilhar. Significaria também um mundo no qual, no final, muito poucas pessoas escreveriam livros. Assim, ao invés de mais, teríamos no final menos cultura para receber. Quanto mais se tem, menos se pode compartilhar.

Tudo que pedimos é um pouco de tempo. Não foi ainda provado de maneira conclusiva que a cultura do "empréstimo" que você chama de "pirataria" tem apenas consequências negativas para a produção da cultura. Também não foi ainda provado que se deve necessariamente encontrar consequências negativas para a cultura porque há consequências negativas para o balanço fiscal da indústria cultural. Até quando isso seja feito, deixe-nos ser.

Aprenda sobre nós por todos os meios, argumente conosco por todos os meios, mas não se apresse em destruir a mata virgem que habitamos. Nós admiramos seu jardim tão cuidadosamente cuidado. Sabemos que não é fácil para você nos deixar entrar naquele espaço. Entedemos e respeitamos. Não pedimos gratidão de volta pelo fato de preferirmos nos esconder na vegetação rasteira da cultura. Tudo que pedimos é a benevolência da sua indiferença. Seria o suficiente por agora.

Atenciosamente,

Habitantes do Commons Não Legal e aqueles que viajam de lá para cá

[Baseado em debates entre Shaina Anand, Namita Malhotra, Paul Keller, Lawrence Liang, Bjorn Wijers, Patrice Riemens, Monica Narula, Rasmus Fleischer, Palle Torsson, Jan Gerber, Sebastian Lüttgert, Toni Prug, Vera Franz, Konrad Becker & Tabatabai]


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